A verdade do apagão e o apagão da verdade (parte 1/2)

Sem a luz da verdade, vimo-nos levados por uma onda de "fake news" que geraram medo e pânico. Neste primeiro artigo, explicarei a ciência das causas conhecidas do apagão, contra a falsidade da era da pós-verdade.

A Verdade do apagão

 

No passado dia 28 de Abril, sentimos a falta que nos fazem tanto a luz das lâmpadas como a da verdade. Múltiplas notícias falsas circularam nas redes, incluindo o Whatsapp, atribuindo as culpas a um “ciberataque russo”, “um fenómeno atmosférico raro”, prevendo “pelo menos 72h sem eletricidade”, etc. Apesar do governo e as entidades responsáveis desmentirem várias vezes essas notícias [1], a desinformação causou — e continua a causar — danos às pessoas e até à ciência, por ela desacreditada. Eis, na verdade, o que se sabe:

 

No passado dia 17 de Junho, o governo espanhol[2], recorrendo a um comité com mais de 75 especialistas, “descartou a possibilidade de que o incidente tenha sido um ciberataque” e repartiu o problema em três “origens” relativas ao sistema elétrico espanhol: “insuficiência de capacidade de controlo das tensões”, “oscilações que condicionaram o funcionamento do sistema” e “ centrais de geração [que] foram desligadas, em alguns casos de forma aparentemente imprópria”.

 

Em primeiro lugar, em Espanha, as centrais de geração síncrona (hidroelétricas, termoelétricas) planeadas para produzir nesse dia não eram suficientes (ver explicação em [3]) para absorver a possível potência reativa excedente na rede e, pelo contrário, no dia, alguma central chegou até a aumentá-la por mau funcionamento. Em dezembro de 2024[4] a REN já tinha advertido sobre o risco de apagão, e em 2007[5] propusera uma metodologia para a prevenção de apagões e a sua implementação na Rede de Transmissão Portuguesa. Nesse dia, em Portugal, não só havia centrais de geração síncrona suficientes, como as centrais solares dispõem de capacidade para absorver automaticamente potência reativa, estando assim prevenidas.

Em segundo lugar, registaram-se oscilações atípicas (de 0,6 Hz, ver explicação científica em [6]) na frequência no sistema elétrico europeu (50 Hz). A fim de amortecer as oscilações, procedeu-se à modificação do sistema em Espanha, causando o aumento da tensão.

Em terceiro lugar, as centrais de produção começaram a desativar-se automaticamente em Espanha, por protocolos de proteção acionados pelo excesso de tensão, o que fez aumentar ainda mais a tensão na rede, numa “queda em cascata”, até ao colapso da rede espanhola. O governo espanhol aponta a possibilidade de algumas centrais se terem desativado prematuramente, mas os operadores afirmam ter respeitado os regulamentos.

 

Em Portugal, a rede também colapsou dado o corte repentino de fornecimento de energia espanhola e a falta de inércia do sistema ibérico, não do sistema português.

Em geral, ainda não sabemos se “a culpa morrerá solteira”[7] e o dote das indenizações não será cobrado. A investigação ainda está em curso, com reuniões agendadas e dados a serem recolhidos. O governo espanhol atribui o apagão a um “conjunto de fatores”, ao passo que o operador da rede espanhola (Red Eléctrica) acusa as falhas nas centrais elétricas, e estas devolvem a acusação justificando que “a Red Eléctrica é a única responsável por controlar os níveis de tensão, e tem várias ferramentas para o fazer. […] Não se devem confundir as causas [a alta tensão] com as consequências [o disparo das centrais]”[8].

A recuperação[9] foi elogiada nacional e internacionalmente pela sua agilidade[10], ainda assim, o governo espanhol propôs várias medidas[11] e já aprovou alguns incentivos[12].

Assim, na medida do possível, está definida a verdade do apagão. Mas qual a “verdade” por detrás das fake news? Porque é que mexeram tanto com os nossos sentimentos?

“Já cumprimos a fase do fact check, o polígrafo já dissipou as sombras da falsidade, mas não voltou tudo ao normal. O medo, a incerteza, a desconfiança entranhou-se mais um pouco no nosso dia a dia: a desinformação venceu de tal modo que há quem seja capaz de dizer com emoção: «Ok, o ciberataque não aconteceu, mas podia ter acontecido, é-me igual». Este pensamento é fatídico, irresponsável e indiferente à verdade absoluta, e é justificado pelo «eu sinto, logo é verdade» …” ( excerto retirado do artigo, que sairá em breve, no qual se explora o “apagão da verdade” na era da pós-verdade).

 

Obrigado pelo seu tempo e, por favor, não partilhe notícias pelo WhatsApp sem primeiro confirmar as fontes.

Imagem:  Rita Melo Ribeiro

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[1] Ver notícias em:
Fact Check na CNN;
Quatro fake news; Fact Checking

[2] Ver comunicado do governo espanhol.

[3] Durante o apagão, a maior parte da eletricidade espanhola estava a ser produzida por energia solar, sem capacidade de absorver eventuais perturbações na potência reativa e na frequência do sistema.

[4] “No seu mais recente plano a REN propunha investir em equipamentos para dar mais estabilidade à rede elétrica e evitar [apagões]”. Ver notícia em: Avisos da REN

[5] Ver artigo de Matos Fernandes et al.

[6] A Red elétrica aponta a uma central solar em Badajoz (da Iberdrola) como sendo a origem da primeira oscilação “significante” (cf. o jornal espanhol El diario). As oscilações de frequência dão-se quando a produção e o consumo de eletricidade não estão perfeitamente sincronizados. Para estabilizar a frequência nos 50 Hz, o sistema elétrico deve possuir inércia suficiente, isto é, capacidade de resistência mecânica a perturbações, inerente aos eixos rotativos dos geradores síncronos (centrais hidráulicas e termoelétricas, como as de gás, nuclear e carvão). As centrais eólicas e solares, tradicionalmente, não têm essa capacidade de resposta imediata, mas estão-se a desenvolver elementos adicionais para compensar isso, como soluções de “eletrónica de potência” e baterias que podem injetar na rede em menos de 5ms. Além disso, a extensa rede elétrica europeia é um fator de risco a ser compensado com o adensamento das ligações, para evitar a assincronia entre veios que distem demasiado entre si.

[7] Ver notícia em: Cinco ideias a reter sobre o apagão.

[8] A Red Elétrica é acusada pela Aelec (grupo que representa a Endesa, Iberdrola e EDP) de, nesse dia, ter utilizado o menor número de geradores termoelétricos do ano, concentrando-os no norte, o que reduziu a capacidade de resposta nos momentos críticos. Questiona também por que razão a rede não substituiu uma central termoelétrica que, nesse dia, se declarou indisponível. Ver mais neste pdf da Compass Lexecon e INESC TEC; e na notícia sobre a Aelec.

[9] A recuperação foi feita através de centrais síncronas com arranque autónomo (em Portugal e Espanha) e conexões com França e Marrocos (em Espanha). A eletricidade foi reposta como que a partir de ilhas isoladas que lentamente se expandiram, sem poder desequilibrar a relação produção-consumo, sob pena de mais apagões.

[10] Recuperação ágil: 50% de Espanha tinha eletricidade às 22h, e 99,95% às 7h do dia 29. Portugal apresenta valores semelhantes.

[11] Medidas propostas: implementar mais ferramentas de controlo de tensão; assegurar o cumprimento das obrigações dos agentes do setor elétrico; e reforçar as interligações com os países vizinhos. No caso do governo português, este pretende ainda duplicar o número de centrais com arranque autónomo (black start) além da central da Tapada do Outeiro (gás) e de Castelo de Bode (hidroelétrica).

[12] Ver notícia sobre pacotes do governo espanhol.