Talvez possa dizer que a saudade é o sentimento existencial mais profundo do ser humano, abarcando-o por completo nas suas dimensões cognitiva, volitiva e afetiva. Este sentimento evoca temporalidade, dado que o sujeito vê o objeto desejado representado em relação ao presente, comparando os três momentos temporais: o passado, mais carregado de afeto, com o presente em que deseja o afeto passado, apontando para o futuro, enquanto esperança de posse do que deseja.
Numa perspetiva agostiniana, podemos dizer que, na saudade, o sujeito projeta a esperança futura, tornando-a assim presente ao espírito. Vive o gozo passado enquanto carência e o gozo futuro enquanto esperança. Cria esta tensão entre dois momentos distantes no tempo, distendendo-se o sujeito pelo nexo temporal. Encontra-se dividido, permanentemente deslocalizado de si mesmo. Vive na esperança, porque nada lhe garante a inteireza que deseja, e no gemido, porque teme não vir a ser inteiro, recuperando o que lhe falta. Na esperança e no gemido, porque “o gemido é anexo à esperança” (1): o gemido manifesta o desejo na tristeza de não ter o que se espera, onde a falta do bem amado é apreendida como uma falta de si-mesmo.
Além de carregada de intencionalidade (a saudade é sempre saudade de alguém/algo), exige as capacidades e potências intelectivas: tem-se saudade da coisa amada, aquela que se deseja e que não está presente, apenas “enquanto o amado mora na apreensão do amante” (2). Isto é, enquanto a coisa amada é objeto recorrente da memória, recordação e pensamento. Assim, a saudade não pode ser entendida como uma simples paixão, mas antes um estado sentimental que requer a racionalidade destas duas capacidades: da lembrança, ao fazer memória do momento de fruição na posse do bem amado; e do desejo, que pela imaginação se desdobra “no ilimitado das indefinidas realizações” (3) de algum momento futuro (possível ou não) em que projeta voltar a possuir o bem amado e desejado.
Pela imaginação, o sujeito projeta não apenas a presença do bem amado, mas também o estado de maior completude de que o sujeito gozaria estando na sua posse. Daqui facilmente podemos inferir que a posse do bem amado gera alegria, enquanto que a sua perda ou falta gera tristeza.
Num mesmo movimento, é também gerado o desejo e a esperança de reaver. Sentindo a falta, o desejo projeta em esperança a plenitude da posse. Neste movimento descobrimos a saudade como o sentimento da contingência, incompletude e imperfeição: a saudade sente-se porque há uma carência ontológica inegável no espírito humano. O bem desejado aparece sempre como necessidade: desejo-o para a minha maior completude; estar na sua posse é ser mais inteiro.
É por notar este dinamismo que António Magalhães define a saudade como “sentimento de ser e de não ser: de ser porque nos sentimos sendo na saudade, de não ser, porque não nos sentimos Ser totalmente, em plenitude” (4). Definindo a saudade relativamente ao sujeito que se sente não ser completo, então ela “não é sentimento de um objeto que falta, mas dum eu, dum sujeito que sofre de se não possuir e que só se encontrará possuindo-se na doação do Ser, doação ativa e passiva” (5). O seu papel na compreensão da contingência do ser humano é central, não por se referir (apenas) a um objeto exterior, mas por manifestar a carência do próprio ser humano, permitindo o conhecimento da sua estatura ontológica. Compreender isto revela que a saudade não é apenas o sentimento gerado pela esperança da presença do bem amado que falta, mas um sentimento de falta de si-mesmo, como se algo do sujeito estivesse alheado dele. Mais até, como se o próprio sujeito estivesse alheado de si-mesmo.
A saudade é o sentimento de um sujeito, de um eu que sofre por não se possuir. Mais que falta de algo, é uma falta de si-mesmo, por habitar fora de si naquilo que ama e deseja.
A constatação desta carência própria faz-se enquanto diálogo com aquilo que é desejado, porque desejar algo é trazê-lo, pelo afeto e pela vontade, para próximo de mim, enquanto companhia. Devemos notar como a “solidão implica uma viva aspiração de companhia”, uma vez que “o homem não sente a solidão quando está só – o que sente é a saudade, i. é, sente-se acompanhado na solidão, mas em companhia que o deixa insatisfeito. A saudade é o sentimento da experiência espiritual da contingência” (6). A ausência é essa companhia desconfortável. De um modo natural, sem necessidade de raciocínio abstrato, o ser humano conhece-se necessitado duma outra companhia que não a solidão, mas de que a solidão é testemunha. A solidão é sentida enquanto saudade relativamente à companhia em falta, do mesmo modo que dizemos que um lago está seco relativamente à água que o enchia e que, agora, não está lá, ocupando o lugar que até então lhe era natural. Quererá isto dizer que o ser humano, alguma vez, foi inteiro ou está destinado a sê-lo? Se, na saudade, cada um pode reconhecer em si mesmo quer a carência, quer o desejo de algo que o complete, podemos assumir que isso mesmo que deseja, ele o conhece? E, se sim, de que tipo de conhecimento estamos a falar?
Concluindo, talvez uma visão de um racionalismo exacerbado oculte a fonte de conhecimento que são os sentimentos, sobretudo os mais profundos e existenciais. A saudade é um bom exemplo de como um vivência, tantas vezes posta de parte pelo pensamento filosófico racionalista, carregada um peso racional e existencial que ajuda a ler a realidade humana.
(1) S. João da Cruz, «Cântico Espiritual», em Obras Completas (Carmelo de S. José -Fátima: Edições Carmelo, 1986), 582.
(2) Tomás de Aquino, «ST I-II, q. 28», em Suma de Teologia (Madrid: B.A.C., 1989), n. C. 28, a.2.
(3)António Magalhães SJ, Filosofia da Saudade, 271.
(4) Ibid., 275.
(5) Ibid., 275.
(6) Ibid., 266.
Imagem: Sasha Freemind (Unsplash)