A nossa alma, entre Camões e Torga

Resta lançarmo-nos sem medo, diariamente, nessa viagem existencial - de risco, criatividade, superação, sonho - que os nossos “egrégios avós” inauguraram. Sem medo de a transpor para todos os domínios da nossa vida, sabendo que ela implicará sacrifício, mas que, ultimamente, fará jus ao canto que a eternizou.

LÁPIDE


Luís Vaz de Camões.
Poeta infortunado e tutelar.
Fez o milagre de ressuscitar
A Pátria em que nasceu.
Quando, vidente, a viu
A caminho da negra sepultura,
Num poema de amor e de aventura
Deu-lhe a vida
Perdida.
E agora,
Nesta segunda hora
De vil tristeza,
Imortal,
É ele ainda a única certeza
De Portugal.


Miguel Torga, DIÁRIO XIII

Introdução – uma alma contada em canto

Camões – imortalizado na epopeia d’Os Lusíadas – constitui o caso inaudito do narrador de uma história em aberto que com o tempo se transforma na sua personagem principal. Falamos da História de Portugal, contada em verso, e cujo canto está muito longe de cessar.

A “sua desmedida sede de amor e ainda mais fundo desejo de humana imortalidade” (“Camões ou a nossa alma”, Lourenço, 99) não só glorificou as “mulheres amadas”, os “heróis sublimados” e os feitos almejados pelos portugueses, como, pelo modo como foi vertida em verso, quiçá inadvertidamente, o posicionou como astro maior da portugalidade, a ponto de “todos os seus heróis [se tornarem] sombra da sua sombra” (Lourenço, 99). Esta constatação existencial prova que Os Lusíadas são uma obra viva que não se cinge ao passado histórico, mas que é passível de ser transposta e revivida no presente de cada português. Mais, transparece muito claramente que o modo como se conta uma história diz muito mais além dos factos narrados, abre possibilidades sucessivamente novas, potencia a capacidade própria da memória de recriar o passado de cada vez que se exercita.

Já Torga, na sua obra Portugal, reúne um conjunto de conferências proferidas na Fundação Calouste Gulbenkian, nas quais dirige uma autêntica declaração de amor à alma portuguesa, trazido à luz pela riqueza tão natural das suas gentes e pelos traços tão humanos da sua geografia. Estamos diante de uma prosa poética, cujo canto se dá no dar voz aos sons da natureza e às vozes das gentes.

Em “Sagres”, mais do que sociologia regional, vemos um retrato geológico da alma lusa: “longe da astúcia minhota, da agressividade transmontana, da mesquinhez beiroa e da arrogância alentejana, nenhum outro sítio tão azado para o português iniciar quotidianamente a grande façanha de renovação interior” (Portugal, Torga, 137). “Sagres” canta um passado perdido, um presente preterido, e um futuro que pede façanha para se realizar.

Analisaremos o que dizem ambos os “cantos” da nossa alma, e sublinharemos, em jeito de conclusão, uma imagem comum aos textos e que permite desvendar que caminhos futuros se podem abrir.

1. O que diz Camões da nossa alma

Para nos abeirarmos deste poço de identidade que Camões nos serve a transbordar, Eduardo Lourenço sugere a contemplação de dois movimentos: um do autor, outro do português comum. Por um lado, “Camões, depois de peregrinar no vasto mundo que os portugueses alargaram aos confins da Terra, trouxe da viagem nele e no mais fundo do seu coração exilado, um livro de paixão e amor sem igual pela casa lusitana de que os seus «erros, a má fortuna e o amor ardente», para sua futura glória, o haviam afastado.” Por outro lado, Lourenço confessa que “temos de nos elevar coletivamente até ao seu Canto e à exigência que comporta e não fazê-lo descer, por demagogia cultural ou cívica, até aos falsos lugares-comuns com que nos perdemos dele e ele de nós” (Lourenço, 100). Se o primeiro nos fala do contexto de escrita da epopeia camoniana, o segundo instrui-nos acerca do ambiente de receção desejável a obra tão “provocantemente culta”. 

A exigência de zarpar em peregrinação fala-nos de uma jornada de autoconhecimento e de conhecimento do mundo, até aos confins da Terra e até aos abismos da humanidade. Se “para viajar basta existir”, como dirá Pessoa (um frustrado “superCamões” no entender de Lourenço), para cantar há que viajar. Mais ainda, Lourenço parece sugerir que a única possibilidade para cantar a alma portuguesa é através da distância imposta, do exílio forçado, numa consciente mudança de habitat natural do poeta, apartado do conforto paradisíaco da sua “casa lusitana” rumo à intempérie tempestuosa mas tão promissora que a Expansão trouxe.

Não menos importante que aquela, existe uma exigência própria de quem se quer lançar à “simples alegria de o poder ler”. Mas para chegar a tal alegria, há que percorrer um caminho penoso, “irremediável”, eventualmente contra intuitivo, na medida em que “é mesmo impossível falar [da obra] com simplicidade”. Esta condição única de poder ser lida com alegria, mas de ser sempre falada com perturbação, desvela n’Os Lusíadas um fenómeno aproximável à complexidade humana, em particular, à complexidade portuguesa. 

É neste sentido que se sugere uma “osmose” entre “o Poeta e o Livro”, e entre o “Livro e a consciência nacional”. Se os outros povos se revêem nos seus poetas, os portugueses identificam-se com Camões (“nós somos Camões”; Lourenço, 100), já que a portugalidade passou a ser indefinível sem a presença do Poeta, sem a reflexão da sua obra “na imagem mesma de Portugal”. À maneira dos judeus cuja identidade se define e encontra a partir da Torah, ou mesmo dos cristãos que se propõem a viver encarnando as palavras, os gestos e a vida de Jesus assim como é relatada nos Evangelhos, os portugueses encontram n’Os Lusíadas a imagem camoniana de [si] mesmos”, “«bíblia da pátria», alma da nossa alma” (Lourenço, 101). 

Deste modo, o conceito bíblico de género literário ajuda-nos a conhecer o potencial desta narrativa épica, enquanto “obra viva” e não tanto como relato histórico. Tal como os textos religiosos apontam para a realidade de uma forma oblíqua, isto é, sem querer esgotar cientificamente o seu alcance, mas deixando em aberto uma multiplicidade de leituras, interpretações e aplicações, Eduardo Lourenço decreta que Os Lusíadas “é o único livro que não podemos depor na prateleira da História porque é ele mesmo História”, já que continua a “trabalhar e interpelar em profundidade o nosso presente de portugueses” (Lourenço, 102). Se a obra se presta a esta atualidade, faz sentido perguntarmo-nos se “estamos nós, enquanto Nação, em condições de ser ainda o seu leitor ativo”?

Efetivamente, existe o risco de sucumbirmos sufocados “pelo excesso de grandeza irreal que [a obra] continua a projetar na nossa vida profunda” e assim nos conformamos a “habitar o nosso presente de harmonia com a realidade mais modesta em que nos tornamos” (Lourenço, 102). No entanto, mais do que uma alienação platónica que irremediavelmente nos frustra, a epopeia camoniana é o elemento identitário de um povo, a “forma como a nossa aventura heroica toma consciência de si”, resgatando-a. Apropriar-se dela não é um mérito premiável, mas um indispensável movimento de ir ao encontro de si mesmo, numa “coletiva «Busca do Tempo Perdido», para a qual é fundamental a memória evocada e exaltada, somente passível de mitificação pelo “verbo” da “poesia” (Lourenço, 104). Se quisermos, mais do que um mapa idílico de um amanhã que teima em não chegar, Os Lusíadas são a carta de navegação que permite a qualquer português, seja em que época se encontre, reinventar aquela “consciência planetária dos homens” que Camões inaugurou, cantando-a (Lourenço, 104).

Por muito que a realidade se revele distópica, é justamente nela que atua a Poesia. Nas palavras de Eduardo Lourenço, “é preciso que a realidade morra para [a Poesia] poder florir”. É neste contexto que brota a Poesia de Camões, para “ressuscitar” aquela realidade outrora gloriosa e entretanto decadente, e plasmando para a posteridade um Destino que supera qualquer diagnóstico pessimista ou maré conjetural. De facto, à época da redação de Camões, são evidentes os sinais de decadência da empresa portuguesa que associava “num mesmo movimento a Fé e o Império” (Lourenço, 104), como nos mostram tão eloquentemente as “estâncias finais do Poema que os portugueses deveriam saber de cor” (Lourenço, 105). Mas, saber de cor os lamentos do poeta torna ainda mais candente a “existência ideal” que Camões vaticinou para o seu povo no resto da obra.

O tempo encarregou-se de relativizar certos traços da visão camoniana da vida, como a convicção de que “a essência desse Império se confundia com a expansão dessa Fé”, ou as ideias tão comuns à época de que “o esmealita é bárbaro (…) e os negros de África não usufruem do uso pleno da razão” (Lourenço, 106). Mas se “já não somos” os apóstolos-conquistadores, a nossa alma não prescindiu da “Fé” que moveu Camões, antes transformou-a para chegar a ser “aquele amor desarmado dos homens (…) [que se oferece] à imprevisível liberdade de ser aceite ou recusado pelos outros” (Lourenço, 107).

Eduardo Lourenço remata este discurso com uma hipótese para o V Império (“emergindo da humilde casa lusitana e abrindo as asas sobre o mundo”), numa enunciação cuja novidade segue o percurso existencial do Poeta e que coloca no centro da equação a “essência mesma do Homem”, como o Renascimento bem lhe ensinou. Falamos do “império universal do Amor”, que não esquece a lição cantada do “nosso ex-universal império”, mas que extravasa para outras dimensões da humanidade o seu alcance literal. Para o instaurar “teremos de ler [o canto d’Os Lusíadas] e de o ser no que tem de mais humano”, abrindo-nos à aventura solidária e universal de sermos “língua por novas pátrias [e] de novas maneiras soletradas”. Viver desse amor é seguir as pisadas daquele que – “peregrino e errante” – se “fez verbo”, e – cantando – “se fez Pátria” (Lourenço, 107). 

Nesta identificação entre Camões e a alma do povo português sobressaem as afinidades com o papel que Cristo assume na história do Povo de Deus, na perspectiva daqueles que buscam tornar-se “outros Cristos”. Em ambos os casos, a Palavra emerge da realidade, “in media res”, com as suas durezas e potencialidades, aspirando à sua metamorfose beatífica. Se o Verbo se fez carne e inaugurou um novo sentido para o género humano; o verbo da lírica camoniana fez-se pátria, no decorrer da sua História, e vaticinou-lhe um Destino inaudito e incontornável. Se Cristo, Verbo encarnado, veio resgatar os homens dando a vida por amor; Camões, nosso eterno cantor, definiu como desígnio português e em proveito de todos os povos, o “império universal do Amor” (Lourenço, 107).

2. O que diz Torga da nossa alma

O texto de Torga oferece-nos um retrato mais distópico e nostálgico da nossa alma, comparando com a leitura que Eduardo Lourenço faz de Camões. A partir do que ela já pôde ser, é-nos descrito, em jeito de lamento, aquilo em que a alma portuguesa se tornou: “Sagres [e, nela, a alma portuguesa] é hoje um ímpeto parado, a seta indicadora dum rumo perdido, real e simbolicamente” (Torga, 137).

O passado navegador trouxe-nos, à sombra do chapéu do Infante e na direção para onde o promontório de Sagres aponta, um “apogeu” de terras descobertas, de “heroicidade, ferocidade, curiosidade e obstinação”, de génio científico, audácia crente, cabeça erguida e esperança no olhar o horizonte, para além do “abismo azul” (Torga, 139). Por mais limitados que fossem os recursos ou reincidentes os defeitos, a todos aqueles lusos-renascentistas subjaz o fator decisivo no sucesso da empresa portuguesa: “o alargamento da consciência de cada mareante” (Torga, 138). E foi essa universalidade verdadeiramente humanista, de quem reconhece no “homem e [nos] seus mil recursos de expressão” a razão de ser, que possibilitou que os portugueses se encontrassem “eufóricos, porque justificados” (Torga, 139).

Já o presente, de que Torga se queixa na primeira pessoa, parece dever à “intolerância religiosa” a decadência observada, própria de quem “esqueceu a lição” (Torga, 139). Sobressai a apatia comodista de quem não se soube adaptar aos novos tempos, ombreando com as outras potências europeias. Pioneiros, sim, mas jamais consequentes com as potencialidades abertas naqueles mares e naqueles mundos entretanto abertos. Uma vez mais, as características geológicas do promontório de Sagres permitem-nos encontrar uma descrição eloquente do status quo: “Cada vez mais seguro da sua força indicadora, que a própria inactividade acumulava, e a que bastaria apenas actualizar o sentido aliciante de outrora, endureceu as linhas do perfil, repuxou os músculos da fisionomia, e negou-se à degradação de se ver transformado num cemitério de renúncia colectiva – necrópole onde os cadáveres não fossem os mortos do passado, mas os vivos do presente.” (Torga, 140)

Vale a pena atentar na causalidade sugerida por Torga entre o rumo dos acontecimentos nacionais e a tendência geológica do promontório se tornar – por ação do Oceano (e por inação do Continente) – numa “ilha onde não possam chegar peregrinos da impotência” (Torga, 140). Quanto mais fechados sobre nós pŕoprios e acomodados às glórias de outrora, mais a nossa alma se afastará do desígnio perene apontado pelo promontório. Por outro lado, a mesma condição geográfica de ser “um rasgão áspero onde a vida não se resigna a renunciar” (Torga, 137) permite vislumbrar, à luz da glória dos tempos idos, o único caminho de realização possível: “a grande façanha de renovação interior” que cada português é chamado a “iniciar quotidianamente” (Torga, 138).

Conclusão – decidir sobre como cantar o nosso futuro

Em jeito de conclusão, sugere-se uma imagem que tanto Eduardo Lourenço como Miguel Torga pintam acerca da alma portuguesa: a contemplação do mar. Tal imagem fala de um confronto existencial que se dá na alma portuguesa e que determinará, em cada dia, em cada português, o futuro deste povo cantado, o futuro do Império de Amor: ficar ou zarpar. Resta saber se queremos ser promontório que aponta ou ilha esquecida.

“Enquanto os vizinhos da Europa, sem descanso, continuaram a ser pioneiros nas empresas que a vida lhes confiava, nós, enxutos da grande maratona oceânica, ficámos em cima da penedia a ver passar ao longe, a fumegar, as embarcações alheias, e a cantar, ao som duma guitarra, loas à fatalidade”. (Torga, 140)

Por um lado, a sombra do que “já fomos” e o peso do que “já não somos” tem o potencial de nos fechar em fados enfadados, numa autocomiseração infecunda e alimentada pela contemplação dos feitos dos outros. Velhos do Restelo, transplantados como espantalhos inertes por todos os recantos deste “jardim à beira mar plantado”, poderemos dar azo à vitimização, à calúnia que não se compromete, ao suspiro que nada muda.

“Camões deu-nos o palco do mundo, celebrou nele a nossa aventura descobridora e simbólica em tais termos que não parece deixar-nos alternativa como entidade coletiva do que refazer sem fim a viagem do Gama, ou ficar de braços cruzados na praia deserta do Restelo a lamentarmo-nos do que fomos e já não somos, assistindo humilhados à aventura dos outros.” (Lourenço, 103)

Por outro lado, resta lançarmo-nos sem medo, diariamente, nessa viagem existencial – de risco, criatividade, superação, sonho – que os nossos “egrégios avós” inauguraram. Viagem esta sem medo de a transpor para todos os domínios da nossa vida, sabendo que ela implicará sacrifício, mas que ultimamente fará jus ao canto que a eternizou. Que o diga Camões, o cantor-viajante que deu novos mundos ao mundo a partir da sua espada que se confundia com a pena – ícone perene da alma portuguesa.

Bibliografia principal

– Lourenço , Eduardo. Camões ou a nossa alma. AAVV, Camões e a Identidade Nacional. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Col. “Temas Portugueses”, 1983. 99-107. [Vence – Lisboa, 10 de Junho de 1980].

– Torga, Miguel. Portugal. 4ª ed. Coimbra: Coimbra, 1980. 137-140