A Felicidade para S. Tomás de Aquino

A felicidade consiste em contemplar o Senhor, em se relacionar com Ele, em estar a Seus pés em permanente adoração.

O homem — enquanto membro da humanidade e enquanto indivíduo — é de uma determinada maneira. E, se é verdade (como evidentemente é), que o homem age, somos forçado a admitir o que se diz no vulgo: há acções e acções… Embora comer seja uma acção feita por homens, também os animais o fazem; daí que não poderemos chamar-lhe propriamente uma acção humana, mas apenas às procedentes da vontade deliberada, i.e., do discernimento [1].

Daqui S. Tomás pode concluir que as acções propriamente humanas tendem para um fim, porque a vontade sempre se inclina a um bem. Esse bem não só é necessário, como determina a acção. E, sendo que os fins sempre se ordenam a outros fins, há necessariamente um fim último [2].

Este fim último é um só para cada homem e para o conjunto dos homens, pelo menos na sua forma, i.e., todos tendemos para esse último bem, embora discordemos quanto ao seu conteúdo. A este fim último, S. Tomás chamou “beatitude”.

O que será o conteúdo deste bem definitivo que apetece ao homem — de tal modo que guia as suas acções e determina a sua realização e perfeição? Em que consiste a felicidade? Não na riqueza, porque esta sempre se busca em ordem a outros bens! Não na honra, porque esta se recebe por se ser excelente — ainda que somente em parte — e esta excelência é pelo menos já participação no bem perfeito. Não na fama ou glória diante dos homens, pois estas são também mero reconhecimento! Não no poder, porque este se deseja, não como fim último, mas como meio! Não em qualquer bem corporal, já que o fim último do homem remete para fora de si e não pode ser a sua conservação. Não no prazer, porque a capacidade de sentir prazer não é específica do homem e, ainda no seu estado mais elevado de prazer espiritual, é mais propriamente uma consequência do que um fim. Não num bem da alma, já que, embora a felicidade, enquanto algo que se obtém, seja um bem da alma, não pode pertencer-lhe enquanto objecto, pois o bem último é extrínseco ao homem. Não em qualquer coisa criada, pois, como vimos, o bem último é o bem perfeito, e só este pode ser apetite último da vontade. Em suma, todas as coisas criadas participam no bem perfeito, mas só Deus é perfeito, só Ele pode satisfazer o apetite humano… só n’Ele consiste a felicidade [3].

Assim, a felicidade perfeita não é senão o encontro pleno — i.e., propriamente humano — com Deus; e o encontro propriamente humano não se dá pelos sentidos, nem pela vontade, nem pela rectidão moral. Os sentidos poder-se-ão deleitar na felicidade, mas como consequência; a vontade poderá perseguir a felicidade, mas não lhe cabe já abraçá-la; a rectidão moral busca-se como meio para o encontro, mas este não consiste nela. O encontro pleno com Deus, que constitui a felicidade e a perfeição, dá-se na função mais elevada do homem, a razão. Como vimos, é o homem todo que se encontra com Deus, mas este encontro é mais propriamente um acto da razão: «A beatitude última e perfeita não pode estar senão na visão da Divina Essência» [4].

Para compreender a concepção tomista de “razão”, tenhamos em conta a raiz latina, ratio, que nos remete para a relação entre duas partes; ou ainda para a raiz da palavra “intelecto”, intellectus, que remete para intellego, i.e., escolher ou ler entre coisas.

Felicidade Perfeita
A felicidade consiste em contemplar o Senhor, em se relacionar com Ele, em estar a Seus pés em permanente adoração. O homem feliz é o homem plenamente homem, o homem diante de Deus, o homem cujo centro está no Centro. O homem realmente feliz é aquele que pode repetir o anúncio de S. João Baptista — «Eis o Cordeiro de Deus»  [5] —, aquele que pode fazer ressoar o aviso de S. João Evangelista — «É o Senhor» [6]. A contemplação beatífica de Deus não é uma acção passiva, mas um acto propriamente humano, quiçá o mais pleno.

Mas o homem não é homem; o homem vive alienado e fragmentado, é frágil e vulnerável. Sim, é verdade. A felicidade perfeita — S. Tomás di-lo claramente — não é coisa para esta vida. Tudo isto só acontece na vida eterna, nunca aqui. Mas não poderemos dizer que o homem é feliz já nesta vida? Sim, podemos; por isso, o Doutor distingue entre felicidade perfeita e felicidade imperfeita.

Felicidade Imperfeita
Aqui, como em todo o pensamento tomista, “imperfeito” não quer dizer “defeituoso”, mas simplesmente isso mesmo, im-perfeito, “não perfeito”, i.e., “não plenamente feito”. O fim último do homem só se obtém na vida eterna; persegue-se, no entanto, já aqui: essa persecução do bem último e perfeito, a ordenação dos meios em ordem a esse fim é a felicidade imperfeita. S. Tomás de Aquino, creio, não o diz, mas arrisco-me eu a dizê-lo: esta felicidade é também um acto específico da vontade. Não digo que “ser feliz é uma questão de vontade”, mas que, ao fim e ao cabo, é também um acto da vontade: na medida em que a persecução da contemplação também é, de certo modo, felicidade, a vontade — que, como disse, ordena os meios à persecução — é fundamental à mesma.

Esta noção de felicidade imperfeita é fulcral. A felicidade não é uma questão “para amanhã”, nem mera esperança de uma vida melhor. A felicidade é também a persecução dessa vida já nesta, desde o “aqui” em que estamos. A felicidade imperfeita é a nossa experiência quotidiana de felicidade; e é verdadeira felicidade.

No Texto das Bem-Aventuranças podemos testemunhar a Palavra Viva: a felicidade é presente, mas a sua fonte é Eterna. Somos felizes porque seremos consolados, porque veremos a Deus, porque seremos chamados… no fundo, porque grande será a nossa recompensa no Céu; mas, se é verdade que somos felizes pelo que nos espera — i.e., pela felicidade perfeita —, verdade é que o somos já, hoje… e, se “felicidade imperfeita” é um nome que atrapalha, bem lhe poderíamos chamar “felicidade do caminho”.

 


  1. Cf. S. Tomás de Aquino, Summa Theologicae, Ia-IIae, q. 1, a. 1, resp.
  2. Cf. ibidem, a. 4, resp.
  3. Cf. ibidem, q. 2.
  4. Cf. ibidem, q. 3.
  5. Jo 1, 29.
  6. Jo 21, 7.