«E não vedes, inteligências da superfície, que a luz vos é emprestada pelo Mistério que quereis negar?!»
A alegria é apresentada por Leonardo primeira como a Alegria da Aurora, do amanhecer, em que da desordem da noite surgem os primeiros raios luminosos que dão forma e ordem. A alegria da graça simples que se opõe à multiplicidade do caos; a alegria da criança anterior ao pecado original, onde a maravilha do Mistério é o seu modo de estar… Daqui, a noção de Alegria de Leonardo Coimbra parece tomar um caminho dos sentidos, uma alegria dos sons, dos movimentos… «A Alegria rubra de correr ao Sol, sob a abóbada dos ramos dobrados de frutos, de morder a polpa sangrenta das cerejas e ouvir a água aos gorgolejos, fugir das poças para as tantas bocas de terra que esperam». Uma realidade que deve ser cuidada, acarinhada, que não pode ser desprezada na nossa consciência para que não perca a nossa atenção, para que o ser humano não caia na infelicidade ou permaneça infeliz por descuidada atenção às suas sensações – estado em que se encontra o ser humano adulto, o que Leonardo Coimbra chama a «quietação do adulto».
Porém, a alegria tem, para Leonardo Coimbra, uma origem mais primitiva, a da Unidade originária que lança o indivíduo para fora de si numa ansiosa insatisfação, num sentimento de qualquer coisa a resolver ou completar. «No homem, o instinto amoroso, coloca, desde logo e na sua imediata realidade física, o foco da vida individual para além de cada indivíduo». Uma projeção na alteridade que afirma no ser humano a sua timidez e comoção, a incerteza de quem sai de si em busca de um outro. Uma quase evidência nostálgica da procura de unidade que parece recordar o mito grego da alma gémea provocado por Zeus que, alcançada, lava o olhar e estabelece um novo valor à realidade – o valor da verdadeira Alegria da união. Alegria que Leonardo Coimbra expressa nas suas palavras mais sublimes: «O mundo é uma unidade que se realiza, o corpo é uma síntese de vida, a conjugação dos corpos uma nova síntese, que opulenta e cria uma maior vida».
Ora, este instinto unificador, diz Leonardo Coimbra, surge no ser humano na puberdade. Instinto este que não se encerra num desejo de prazer, mas na própria alegria da união além de si, do ser completo. Um impulso que envolve toda a sua realidade, corpo e alma e que, quando perfeito, repõe a identidade fundamental do corpo e do espírito. E, porque envolve toda a pessoa se revela numa interpretação de instinto muito além de uma visão prazerosa carnal que poderia orientar a nossa concessão de carne segundo uma conotação negativa. Não. Aqui carne e espírito estão ao mesmo nível, na busca da sua unidade completa.
Se a unidade suscita ao ser humano uma alegria que se realiza no encontro fora de si, utilizando uma linguagem nietzschiana, Leonardo Coimbra, fala ainda da Alegria provocada pela vontade própria, a Alegria da conquista. Uma alegria que pode manifestar-se até de forma violenta. Uma alegria fruto da realização pessoal a que Nietzsche concretizaria como a Alegria do super-homem ou do nihilista ativo. Que, destruindo tudo responde somente à sua vontade de poder – o gozo da plenitude individual absoluta: ser grande, ser forte, ser terrível, «penetrar, devorar os outros». Aquilo que, Leonardo Coimbra apresenta como «a alegria da conquista, da mais alta afirmação de si, a supressão de todas as sombras para que nada nelas oculte o seu mistério, a supressão da própria sombra para que nada aponte a complexidade inassimilável, para que, em absoluta coincidência do querer com o possuir, apenas exista a maciça realidade da nossa presença».
Esta alegria dará origem a um outro tipo de alegria, aquele que se manifesta na realização do próprio poder – a alegria de criar. «O esplêndido exercício da Alegria criadora dando-se, no homem, o Espetáculo da criação universal». Alegria esta que encontra na poesia a possibilidade de dar voz ao silêncio do mundo que ilumina as suas sombras, abate os seus abismos e possibilita significados «todo o som irá prontamente traduzir e revelar». A poesia é como se permitisse a palavra ao mundo, como se desse ao ser humano a sensibilidade necessária para reconhecer as tantas vozes com que a natureza parece expressar-se. Diz Leonardo Coimbra, «na poesia é a palavra humana que dá fôlego à inércia das coisas, é o sentimento, o psiquismo, que empresta ao silêncio da matéria uma janela por onde o seu interior espreite».
Contudo esta alegria deve ser comunicada. O ser humano atinge a palavra mas esta morre só, sem utilidade, sem finalidade e por isso sem sentido se não tiver quem a ouça e que lhe faça eco. E é no interior da família que o ser humano experimenta o uso mais sincero desta palavra. É no seio da família que o ser humano experimenta a verdade e a justeza das palavras que a imensidade do mundo dificulta. É a família que proporciona este recolhimento no essencial sem os inúmeros acidentes, como lhes chama Leonardo Coimbra, que o mundo reclama à pessoa. Acidentes estes, onde cada um se camufla, se protege, artifícios individualistas de arrogância e egoísmo. Em vez disso, a família revela-se como a alegria da verdade em que cada um se pode apresentar de modo humildade, ativo, bom afirmando com o seu agir o espírito que a cria. «Eis porque a família é uma fonte de Alegria bem insubstituível. Por ela somos verdadeiros. Quantos há que só despem os artifícios dentro de sua casa (…) por ela e para ela somos humildes interrogativas, espíritos ativos, bondades positivas, afirmando, na realidade da obra, a efetiva realidade do espírito, que a cria».
Contudo, além do prazer, da unidade, do poder, da criação ou da família, Leonardo Coimbra parece apresentar um outro grau de alegria, uma outra dimensão deste mistério que se encontra na consciência, «onde o Universo atinge uma unidade interior que tudo conserva (…) onde o homem guarda a plena posse de todas as alegrias» – a alegria da memória. Aqui está presente tudo, é o coração da alegria, anterior a qualquer expressão prazerosa, livre de qualquer limite, unidade presente, sem princípio e sem fim, porque as recordações não param. «Toda a Alegria do Universo é a posse plena da sua harmonia, a integral memória do seu Ser».
Obra citada: Leonardo Coimbra, A Alegria, A Dor e A Graça, p.400-256.
Imagem: Rui Silva SJ