As Indulgências ainda fazem sentido?

No Ano Inaciano, quem visitar uma Igreja da Companhia de Jesus, celebrar a reconciliação e a eucaristia e rezar pelas intenções do Papa pode receber uma indulgência. Mas o que é uma indulgência? Esta prática ainda faz sentido?

1 – O que é uma indulgência?

No livro Crime e Castigo (Dostoiévski), depois de Raskólnikov ter confessado o seu crime, permaneceram no seu coração “resíduos tóxicos” do mal por ele cometido. É apenas quando se sente profundamente amado por Sonia que essa atmosfera interior se limpa das mazelas tóxicas que o crime tinha deixado na sua memória e liberdade. Raskólnikov passa então a sentir-se inteiramente redimido pelo amor.

Do mesmo modo, quando nos confessamos, a graça do perdão absolve-nos da culpa do pecado. Porém, o pecado deixa mazelas na memória e na liberdade de quem o realizou, na vida de quem foi afetado por esse pecado e na criação.

Portanto, é necessário embarcar num caminho espiritual de cura dessas mazelas que representam o fechamento à graça, i.e.: a pena temporal. Para a sua remissão, a confissão propõe um caminho penitencial de regresso à abertura interior. De modo mais intenso, pela indulgência plenária, a remissão dessa pena é como que sacramentalmente realizada no coração do crente mediante: 1. a peregrinação a uma igreja jubilar; 2. a confissão dos pecados no sacramento reconciliação; 3. receção da Eucaristia; 4. uma oração pelas intenções do Papa e da Igreja.

2 – O que têm as indulgências a ver com o Ano Inaciano?

A Companhia de Jesus celebra o Ano Inaciano que assinala os 500 anos da conversão de S. Inácio de Loyola, seu fundador. Neste ano festivo, a Santa Sé concede a indulgência plenária a todos os fiéis que visitem uma igreja da Companhia de Jesus (ou confiada aos jesuítas), acedam aos sacramentos da reconciliação e da eucaristia e rezem pelas intenções do Papa.

Neste sentido, porque a indulgência plenária é uma graça especial orientada à conversão plena, é então um modo muito adequado para aprofundarmos pessoalmente e em comunidade as raízes espirituais da transformação de Inácio de Loiola. É também um modo especial e concreto para a Companhia de Jesus exercitar o seu compromisso de coração com a reconciliação humana e sacramental das pessoas entre si, com a criação e com Deus – um compromisso que se remonta às suas origens e está presente nas atas das suas Congregações Gerais mais recentes.

3 – Quando surgiram as primeiras indulgências?

As indulgências estavam ligadas às cruzadas, inicialmente concedidas aos cruzados – Concílio Lateranense III (1179) – e mais tarde também a quem financiava as cruzadas – Concílio Lateranense IV (1213), Concílio de Lyon I (1245) e II (1274).

Durante o século XII, as indulgências tornaram-se cada vez mais frequentes, concedidas pelos bispos locais, que procuraram libertar os fiéis do fardo das penitências sob várias condições, muitas vezes ligadas a ofertas. O Quarto Concílio Lateranense tentou regular esta prática.

Em 1294, o Papa Celestino V conferiu a indulgência plenária por ocasião da sua coroação àqueles que visitassem a igreja onde esta teve lugar.

O primeiro Jubileu Romano foi anunciado pelo Papa Bonifácio VIII em 1300. As indulgências desse ano deveriam ser aplicadas de cem em cem anos.

4 – Há alguma referência bíblica às indulgências?

A origem da indulgência remonta ao Antigo Testamento, no qual Deus instituiu: a semana, como memória dos sete dias da Criação (Ex 20, 8-10); o ano sabático (Lev 25,1-7) que servia para “descansar” a terra; e o jubileu (Lv 25,10).

Nos anos sabáticos e jubilares, Deus ordenou aos israelitas que fossem misericordiosos para com os pobres (perdoando dívidas ou devolvendo terras) e para com os escravos (libertando-os, em memória da misericórdia de Deus que os tinha libertado da escravatura no Egipto).

No AT temos figuras exemplares que não excluem passagens punitivas, mas as integram numa dinâmica salvífica. Pensemos em José do Egito, Moisés e David.

A primeira indulgência cristã é aplicada pelo próprio Jesus quando diz ao malfeitor “Em verdade te digo, hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23,43).

5 – Por que razão é que se tornaram polémicas?

A questão das indulgências está diretamente ligada à cisão que a reforma luterana infligiu na igreja no inicio do seculo XVI. Em 1507 o papa Júlio II e em 1513 o papa Leão X instituíram uma indulgência para se poder construir a Basílica de S. Pedro prometendo a graça de Deus a quem contribuísse economicamente para este empreendimento.

Na Alemanha foram vendidas indulgências como garantia para custear as dividas pecuniárias do Arcebispo de Mongúcia, Alberto de Bradenburgo aos banqueiros Fugger. Para conseguir este objetivo o arcebispo foi nomeado comissário das indulgências e delegou num frade dominicano, Johann Tetzel a pregação da indulgência, que ainda que fosse correta do ponto de vista doutrinal, era escandalosa e crua do ponto de vista propagandístico.

Dizia-se que pregava em modo próximo ao famoso dito” logo que o dinheiro soa na caixa, a alma voa para o céu”. Uma lenda negra avolumou-se em redor da pregação de Tetzel, atribuindo-se-lhe infundadamente afirmações como a de dizer que é possível comprar indulgências para pecados futuros e outras completamente blasfemas e sacrílegas. Ora isto,  provocou uma forte reação no frade agostinho Martinho Lutero. Parecia-lhe absurdo que se Deus salva gratuitamente, a Igreja fizesse depender a salvação de um pagamento.

Lutero escreve 95 teses para clarificar a eficácia das indulgências e publica-as em 1517. Essas 95 teses algumas irónicas e mordazes, procuram refutar a possibilidade de se ser dispensado da penitência pelas indulgências. Lutero afirma que o cristão não deve deixar-se cair numa falsa segurança, confiando em indulgências, dinheiro, ritos exteriores; deve abraçar a cruz e procurar a contrição. Na tese 86 pergunta “Porque é que o Papa cuja fortuna é hoje bastante maior do que a dos ricos mais opulentos, não constrói uma basílica de S. Pedro com o seu próprio dinheiro, em vez de o fazer com o dos pobres crentes?

Após um período de acusação e contra-acusações que divide a Alemanha, Lutero é excomungado pela bula Exsurge Domino de Junho de 1520 e é banido do Império através do Édito de Worms de 1521. Lutero escreve então De Captivitate Babilonica, onde ataca fortemente a Igreja e alarga a crítica á eclesiologia, aos sacramentos, ao Papa e aos Concílios. Em dezembro de 1520, Lutero queima a bula papal e o Código de Direito Canónico numa praça em Wittemberg.

6 – Há alguma ligação das indulgências à História da Companhia de Jesus? E à Espiritualidade Inaciana?

A concessão de indulgências à Companhia de Jesus acha-se ligada especialmente à prática dos Exercícios Espirituais, à novena da graça de S. Francisco Xavier, bem como à devoção ao Sagrado Coração de Jesus e às missões populares e ad gentes da Companhia.

Destacamos duas dessas práticas.

Exercícios Espirituais – A prática dos Exercícios Espirituais foi alvo de numerosos pronunciamentos de pelo menos 29 papas, através de discursos, de encíclicas e da concessão de indulgências a quem os fizer, desde a primeira recomendação do breve Pastoralis offlcii com que se publicou a primeira edição do livro de Ignacio, em 1548. Concede-se indulgência plenária ao fiel que faz os exercícios espirituais ao menos por três dias. Deve-se a Francisco de Borja, ainda Duque de Gandia o interesse pela difusão dos exercícios inacianos. Alarmado pelos ataques de que eram objeto, conseguiu que o Papa Paulo III concedesse a 2 de janeiro de 1547 indulgência plenária a quantos, plenamente contritos, se confessassem a um padre da Companhia de Jesus. Dando um passo mais, pediu ao Papa que fizesse examinar o livro dos EE. Paulo III encarregou deste trabalho os cardeais Juan Álvarez de Toledo e o Mestre do Sacro Palácio, Egidio Foscarari, que deram a sua aprovação ao livro. Já no século XX, destaca-se entre todos os pronunciamentos papais a encíclica Mens nostra, do papa Pio XI de 20 de Dezembro de 1929 toda dedicada aos EE.

Novena da Graça –  Em dezembro de 1633, o Padre Marcello Mastrilli, jovem jesuíta, estando já sem esperança de vida, foi consolado várias vezes com a visita de São Francisco Xavier, que, numa aparição, a 3 de janeiro de 1634, lhe deu instantaneamente a saúde e lhe preanunciou a morte gloriosa, que pela fé haveria de vir a ter no Japão.  A notícia deste milagre divulgou-se rapidamente não só na Itália, mas em toda a Europa, sobretudo em França, Espanha e Portugal e, a partir daí, em todo o mundo. Por um sentimento de confiança no poder e bondade do grande Apóstolo das Índias, começaram os fiéis a invocá-lo por meio de uma novena, cuja eficácia a tornou famosa como “Novena da Graça”. Segundo o Padre Marcello Mastrilli, foram estas as palavras do Santo: “Todas aquelas pessoas que implorarem a minha ajuda, diariamente e por nove dias seguidos, de 4 a 12 de Março, e, num desses dias, receberem dignamente os sacramentos da Reconciliação e da Sagrada Comunhão, hão-de experimentar a minha proteção e podem esperar, com toda a confiança, que obterão de Deus qualquer graça que pedirem, para bem das suas almas ou para a glória de Deus”. Clemente XIII em 1759, Pio VI em 1783, Leão XIII em 1898 e Pio X em 1904 concederam especiais indulgencias aos que façam a novena da graça. Este último declarou que a Novena da Graça se poderia fazer em qualquer parte, por todos os fiéis, duas vezes por ano; e que, ou fosse em público ou em privado, podiam obter-se indulgências, aplicáveis às almas do purgatório, orando pelas intenções do Santo Padre.

7 – A Igreja ainda mantém esta prática? Em que situações?

Esta é uma prática muito antiga na tradição da Igreja e sujeita a muitas incompreensões e abusos ao longo da história, mas que se mantém atual na vida da Igreja. Quando por volta do século XI se começa a desenvolver esta prática, compreendida como remissão das “consequências temporais” do pecado, estava em causa a passagem histórica de uma forma de remissão de pecado que pressupunha que as consequências do pecado já tinham sido eliminadas. Isto significa que depois de confessado o pecado era ainda necessário lidar com as suas consequências práticas que derivaram do mal cometido.

Esta prática espiritual ajuda-nos a ter consciência de que o facto de nos termos arrependido do mal que fizemos não elimina as suas consequências. Assim, a indulgência está associada a momentos particulares em que procuramos conscientemente a Deus: uns dias de Exercícios Espirituais ou uma peregrinação a um santuário ou a uma igreja particular, podem ser sinal de querer efetivamente aderir à vida nova em Cristo e que, por isso, acreditamos que estes gestos ajudam a mitigar as consequências do pecado que cometemos e do qual já nos arrependemos e já fomos perdoados.

8 – Há indulgências plenárias e parciais?

O papa Bonifácio VIII, no ano santo de 1300, foi o primeiro a conceder uma “indulgência plenária” permitindo assim que se desenvolvesse o modo como se entendiam as indulgências. A linguagem que se adotou para descrever as consequências práticas do pecado foi muito concreta e referia-se ao “tempo” que seria necessário para que desaparecessem as marcas desse pecado. Pecados diferentes têm consequências diferentes. Se alguém for assassinado, mesmo que o assassino se arrependa, a família daquele que foi morto ficará, talvez por gerações, com as marcas daquele pecado, enquanto que se alguém insulta o seu irmão, se arrepende e lhe pede perdão, as consequências negativas podem desaparecer rapidamente. De modo semelhante, o nosso gesto exterior de arrependimento pode ter dimensões diferentes: se alguém faz uma longa peregrinação, em oração, confessa com toda a sinceridade os seus pecados, reza pela Igreja, pelas intenções do Santo Padre, sinal da sua comunhão com todo o corpo de Cristo, celebra a Eucaristia e comunga isto tem um impacto espiritual na sua vida muito diferente de rezar o terço.

Aqui não há nada de mágico, mas a consciência de que se alguém, escutando a palavra do Santo Padre, sai de sua casa e pede a Deus que o ajude a superar o mal que praticou, se confessa, celebra a eucaristia e comunga, está em comunhão com a Igreja e deseja realmente viver a vida Nova em Cristo.

9 – Se me confessar, os pecados são todos perdoados. Então para que serve a indulgência?

O sacramento da penitência não tem que ver simplesmente com a “confissão” do pecado e com a respetiva “absolvição”. Quando um batizado confessa o seu pecado, a graça do perdão absolve-o da culpa. Contudo, além da culpa pelo mau uso da liberdade, o pecado deixou marcas negativas em quem o realizou, nos outros e na criação, feridas graves, dolorosas e tóxicas que determinam o seu modo de ser, o seu estilo de vida e condicionam o futuro (“pena temporal”). O perdão não transforma imediatamente, por um passo de magia, a realidade pessoal e relacional do batizado, com o que ela tem de “velho”. Por isso, ao pecado perdoado corresponderá um processo penitencial, eventualmente doloroso e longo, de trabalho existencial do batizado sobre si mesmo. Trata-se da sua resposta livre e empenhada à graça do perdão recebido no sacramento.  O perdão, constitui-se, pois, como o início de um itinerário efetivo de mudança de vida: põe a vida em movimento, através de um processo penitencial. Este é o sentido da “penitência” que o ministro dá ao batizado perdoado no final do rito sacramental. É neste quadro que a indulgência tem lugar e ganha sentido. Libertando da “pena temporal”, ou seja, incidindo sobre as consequências negativas do pecado nas quais o batizado perdoado está a trabalhar existencialmente, exprime a proximidade e a solicitude da Igreja para com ele. A comunidade cristã toma a seu cuidado a resposta do batizado ao perdão recebido e fá-lo de modo gracioso e festivo.

Num contexto já quotidianamente marcado por práticas penitenciais, a indulgência nasceu para atenuar a dureza do regime penitencial imposto pelo sacramento da penitência. O ritmo ferial era excecionalmente interrompido por um elemento benevolente da Igreja. Hoje, num contexto eclesial e cultural radicalmente diferente e quando na compreensão do próprio sacramento da penitência se perde o enfoque no processo penitencial que dele deveria resultar, o recurso à indulgência deveria poder acender o desejo e iniciar a um exercício penitencial, livre e significativo, de reforma de vida por parte do batizado.