S. João de Brito
Quem é visitado, sai a visitar. É assim nas epopeias gregas, que nos contam as histórias de Ulisses, Aquiles e seus companheiros. É assim nos relatos bíblicos, como os de Abraão, Moisés e Maria. Até nas histórias favoritas do nosso tempo, como as sagas «Harry Potter», «Star Wars» ou «Senhor dos Anéis», a aventura começa sempre com uma visita inesperada, que leva os nossos «heróis» a sair de casa rumo ao desconhecido. Foi assim também com S. João de Brito, que na sua adolescência viu a vida de S. Francisco Xavier como convite a sonhar, a arriscar, e a apaixonar-se pela realidade à qual era chamado.
Um jovem de grandes sonhos
Numa das colinas de Lisboa, no seio de uma família da corte portuguesa, no primeiro dia do mês de março de 1647, João de Brito vê o mundo pela primeira vez. Ainda na sua infância, vivendo numa corte que era o coração daquele que era então um império espalhado por cinco continentes, torna-se companheiro de brincadeiras do príncipe que viria a ser o Rei D. Pedro II. O esplendor, luxo e o poder da corte não poderiam deixar de atrair este jovem, mas foi a vida de S. Francisco Xavier, um dos primeiros jesuítas e missionário no Oriente, que verdadeiramente despertou em si a capacidade de sonhar em grande.
A atração pelo exemplo e vida de S. Francisco Xavier leva-o a entrar na Companhia de Jesus onde, ao ler as cartas enviadas pelos missionários da Índia, toma conhecimento da existência dos «párias», pessoas sem casta e, naturalmente, sem lugar na sociedade indiana, forçados a viver fora das populações, muitas vezes na selva. Os membros das castas recusavam tocar-lhes, bem como qualquer objeto com o qual eles tivessem entrado em contato, ou casa em que tivessem entrado, ou fruto que tivessem cultivado e colhido, condenando-os a uma miséria absoluta.
O futuro depende da qualidade dos nossos sonhos, e para S. João de Brito nada lhe parecia maior do que ir até às realidades onde há pessoas esquecidas, às periferias existenciais, dando-lhes voz, chamando-os à fé, elevando-os como pudesse, sendo testemunha, entre eles, de uma alegria e esperança sempre maiores.
O futuro depende da qualidade dos nossos sonhos, e para S. João de Brito nada lhe parecia maior do que ir até às realidades onde há pessoas esquecidas, às periferias existenciais, dando-lhes voz, chamando-os à fé, elevando-os como pudesse, sendo testemunha, entre eles, de uma alegria e esperança sempre maiores. Movido por esta atração, conduzido por este sonho, tenta, com todas as suas forças e contra os desejos da sua família, da família real, e até do Provincial dos jesuítas em Portugal, ser enviado para a Índia. Mas tal foi-lhe constantemente negado, até que um missionário, de passagem por Lisboa, intercede junto de Roma para que o enviem para a Índia, rumo ao seu sonho.
Toda a aventura implica assumir riscos
Este santo jesuíta é então enviado ao Madurai, no sul da Índia. Para chegar à Índia, passou sete meses num barco, onde entre outros, nove dos dezassete jesuítas que o acompanhavam pereceram, devido às doenças e perigos dessas viagens. Uma vez aí chegado, e para alcançar o Madurai, e sem o conforto de calçado nos seus pés para melhor se integrar na realidade indiana, atravessou selvas, escalou escarpas, desbravou caminho, em mais uma longa viagem, sob o receio constante de ser morto por tigres, ursos e outros animais selvagens. Chegado ao Madurai, habitando terras sob o domínio de reis e príncipes indianos, longe da proteção em que viviam outros portugueses, viveu entre o louvor e a perseguição, não poucas vezes refugiando-se na selva, entre os fora da lei, onde batizava e catequizava discretamente, muitas vezes em segredo, acolhendo e consolando cristãos e uma multidão de curiosos.
À medida que a sua fama de santidade crescia, também um certo sentimento de inimizade por parte das autoridades políticas e religiosas locais aumentava, porque o viam como alguém que abalava uma estrutura social baseada na exclusão. Mas S. João de Brito, diante do perigo, da dificuldade e da perseguição, socorria-se de uma oração simples e pobre, dizendo tão somente: «Senhor, aqui estou! Que queres que eu faça?» – esta pergunta-chave para a espiritualidade dos jesuítas, levava-o a enfrentar as incontornáveis dificuldades, as recorrentes prisões e as constantes humilhações, com esperança e alegria, sabendo que estas últimas são as marcas de um apóstolo.
Numa das últimas cartas que escreveu, na última vez que foi preso, podemos ler: «quando a culpa é virtude, o padecer é glória» – isto é, ser perseguido, humilhado ou rejeitado por fazer o bem, não nos deve inquietar, mas pelo contrário, deve-nos encorajar e até alegrar, pois é a isso que somos chamados: a fazer a diferença, a assumir riscos, a agir, para assim ser sinal de um Deus que não se conforma com a injustiça e que a todos convida a participar na alegria da comunhão. Este atrevimento sereno, esta ousadia constante de S. João de Brito, é luz para os nossos dias, onde por vezes podemos ser demasiado tímidos na forma como vivemos a nossa fé ou ponderamos o nosso papel na realidade maior que é o mundo.
Paixão pela realidade
Não se pode evangelizar uma cultura que não se ama. E S. João de Brito, assumindo um caráter profético em palavras e obras, nunca deixava de fazer acompanhar a denúncia da injustiça com o anúncio de um Reino de paz e amor. Assim que chegou à Índia, adotou os costumes locais, e não só começou a andar descalço, como assumiu os trajes dos «sacerdotes» hindus, a dormir no chão, e a abster-se de carne, de ovos, de peixe, passando a sua alimentação a consistir de arroz, verduras e fruta, tendo como mesa o chão, como pratos as folhas das árvores, e como talheres as mãos.
Não se pode evangelizar uma cultura que não se ama. E S. João de Brito, assumindo um caráter profético em palavras e obras, nunca deixava de fazer acompanhar a denúncia da injustiça com o anúncio de um Reino de paz e amor.
Quando teve de viajar até à Europa, depois de mais uma década vivida na Índia, para dar conta ao Geral da Companhia de Jesus das atividades dos jesuítas naquela região, a todos surpreendeu por não abandonar o estilo de vida que lá adotou, dizendo que os seus irmãos que tinham ficado assim viviam, e que ele era um deles. Ficou três anos em Lisboa, entre 1687 e 1690, considerado um «santo vivo», e que a muitos surpreendeu quando, numa varanda da casa dos jesuítas no Porto, mostrou cerimónias típicas do Madurai, chegando mesmo a dançar para que quem o visse tivesse uma ideia da beleza da cultura em que vivia.
S. João de Brito é para nós hoje um forte sinal de que só um amor pela realidade em que estamos abre as portas da evangelização e da transformação, por dentro, dos lugares a que somos enviados. A fé não é um conhecimento que se transmite, mas uma contagiante alegria, e só o testemunho da fé vivida, em esperança e alegria, incendeia os outros corações.
Um companheiro de caminho para os jovens de hoje
Após enfrentar muitas resistências à sua partida, S. João de Brito conseguiu voltar à Índia, em 1690, voltando ao seu trabalho de sempre. A conversão de um príncipe do Madurai criou uma tal convulsão religiosa e política que acabam por prendê-lo, mais uma vez, em 1693. Foi então condenado à morte, o que veio a acontecer a 4 de fevereiro.
S. João de Brito rompeu as expetativas em torno da sua vida porque ousou sonhar. Ele transformou a realidade à qual foi enviado porque assumiu o risco da grande aventura que é a vida de cada um. Ele evangelizou porque amava a cultura à qual foi enviado. A vida de S. João de Brito é, nos nossos dias, um eco palpável do convite que Jesus faz aos discípulos no mar da Galileia a fazerem-se ao largo – duc in altum –, a arriscar o desconhecido, a ousar partir. Sonho, risco, e paixão pela realidade, são três caraterísticas da vida de S. João de Brito que podem inspirar os nossos jovens a uma nova ousadia apostólica, a uma maior disponibilidade para o sonho de Deus de fraternidade universal, e assim dando-lhe glória com as suas vidas, através deste encontro inesperado com um santo mártir que nos leva à maior aventura da Humanidade: o seguimento de Cristo.
TEXTO DA AUTORIA DE P. NELSON FARIA, SJ
Beato João Fernandes
João Fernandes, natural de Lisboa (ainda concentrada na “Baixa”), foi um dos 73 missionários que, em 1570, acompanharam Inácio de Azevedo no sonho missionário da evangelização do Brasil. Tinha 19 anos e era noviço jesuíta, no Noviciado da Cotovia (hoje Museu Nacional de História Natural, depois de ser Real Colégio dos Nobres, Escola Politécnica e Faculdade de Ciências).
O jovem João Fernandes, seguindo o apelo missionário do P. Inácio de Azevedo, ofereceu-se para o acompanhar. Era muito importante aumentar o número de catequistas no Brasil. Assim, integrou, em janeiro de 1570, o grupo de jovens que o P. Inácio de Azevedo reuniu na Quinta do Val’ do Rosal (Charneca de Caparica), a sul do Tejo, um local de apoio ao colégio jesuíta de Santo Antão (hoje Hospital de São José).
Durante cerca de seis meses, ali se preparam para a viagem e para a sua futura ação missionária, estudando, rezando, discutindo e ouvindo explicações, meditando, vendo e escutando testemunhos sobre os novos povos e lugares. Mantinham-se assim inspirados por Inácio de Azevedo, que os preparava para as dificuldades e para o trabalho missionário.
A evangelização do Brasil tinha começado logo após a sua descoberta em 1500. A Ordem Religiosa dos Jesuítas (Companhia de Jesus), fundada em 1540, enviou para Terras de Santa Cruz os seus primeiros missionários, poucos anos depois da sua fundação. Passadas quase duas décadas, tornava-se necessário avaliar o trabalho realizado e definir objetivos. Para ajudar nesse sentido, foi enviado de Lisboa o P. Inácio de Azevedo, homem ativo, empreendedor e experiente, como reitor dos primeiros colégios de jesuítas em Lisboa e em Braga.
Consciente da urgência de enviar mais pessoas para o Brasil, o Padre Geral escreveu aos Provinciais de Espanha e de Portugal para que facultassem ao P. Inácio, nas suas terras, a recolha quer de missionários quer de recursos materiais.
Após dois anos no Brasil, foi enviado a Roma, em 1565, como Procurador da Índia e do Brasil. Em Roma, recebeu grande apoio do Papa Pio V e do Geral dos Jesuítas, Francisco de Borja, impressionado pelas palavras e pelo carisma missionário de Inácio de Azevedo. Consciente da urgência de enviar mais pessoas para o Brasil, o Padre Geral escreveu aos Provinciais de Espanha e de Portugal para que facultassem ao P. Inácio, nas suas terras, a recolha quer de missionários quer de recursos materiais.
Partida em Missão
A 5 de junho de 1570, João Fernandes partiu do Tejo com mais 73 companheiros, repartidos por três naus, rumo à Ilha da Madeira. No Funchal, primeira etapa da viagem, ficaram alojados na Quinta do Pico do Cardo. A 30 de junho, pressentindo o perigo que iriam correr, dada a aproximação de corsários, Inácio de Azevedo convocou a comitiva antes do embarque: “Queria apenas voluntários da morte por Cristo”! Alguns hesitaram e não quiseram seguir, sendo logo substituídos por outros. João Fernandes fazia parte dos primeiros quarenta voluntários que partiram rumo às Ilhas Canárias, onde permaneceram cinco dias.
O martírio
A 15 de julho, mal tinham iniciado o caminho do Brasil, ainda nas costas de Tazacorte, foram rodeados por uma frota de cinco navios de piratas huguenotes (protestantes), comandados pelo temido Jacques Sória. O comandante da nau pediu voluntários a Inácio de Azevedo, devido à desproporção do número de soldados para defender a nau. Mas a sua condição de religiosos não lhes permitia pegar em armas e atentar contra a vida de ninguém. No entanto, sempre que havia feridos, assistiam-nos, animavam os combatentes e rezavam sempre.
Indo ao seu encontro, Inácio de Azevedo, com a imagem de Nossa Senhora nas mãos, apresentou-se como sacerdote de Cristo: “Todos me sejam testemunhas como morro pela Fé católica e pela Santa Igreja Romana”.
Estando já a nau ocupada pelos calvinistas, e, apercebendo-se eles que se tratava de católicos e missionários, investiram com as armas contra todos aqueles jovens, que foram assim maltratados, feridos e lançados ao mar, alguns deles ainda com vida. Indo ao seu encontro, Inácio de Azevedo, com a imagem de Nossa Senhora nas mãos, apresentou-se como sacerdote de Cristo: “Todos me sejam testemunhas como morro pela Fé católica e pela Santa Igreja Romana”. Depois deste ato, um soldado deu-lhe uma cutilada na cabeça. Azevedo ainda se dirigiu aos seus companheiros dizendo: “Não choreis, meus filhos. Não chegaremos ao Brasil, mas fundaremos, hoje, um colégio no céu”. Os huguenotes, perante tanta firmeza, resolveram acabar com a vida de Inácio de Azevedo e deitá-lo ao mar.
Humanamente, era uma catástrofe para a evangelização do Brasil, mas o testemunho da fé destes mártires falou mais alto e o seu papel de evangelizadores ficou provado pela onda de entusiasmo que suscitou por todo o mundo católico. O sangue de mártires foi, mais uma vez, semente de cristãos.
Santa Teresa de Jesus (de Ávila) relata ao seu confessor – P. Baltazar Alvarez – como viu, na véspera da festa de Nossa Senhora do Carmo (16 de julho), o glorioso esquadrão de mártires ser levado ao céu, com as auréolas do martírio, e, em especial, o beato Francisco Pérez Godói, seu parente de sangue. Foram igualmente registadas algumas aparições: o Beato Inácio de Azevedo apareceu a seu irmão, D. Jerónimo de Azevedo, cercado de luzes e esplendores. O P. Eusébio, no tomo 4º dos seus “Varões Ilustres”, escreve que estes santos mártires apareceram, com coroas de flores na cabeça e palmas nas mãos, a certos “casais de bom viver”. O P. Mário Falcóni relata como, em 1670 (cem anos depois do martírio), no mar das Canárias, a calmaria era surpreendente e surgiram as imagens dos Mártires padecendo, fazendo com que todos os que as viram sentissem uma forte comoção.
Pio IX reconheceu e confirmou o culto ao Beato Inácio de Azevedo e aos seus 39 companheiros de martírio, a 11 de maio de 1854, instituindo a sua festa a 17 de julho.
Nos dias de hoje, celebra-se a festa dos Beatos Mártires em Tazacorte (Ilha de La Palma, Gran Canária) no dia 15 de julho. A eucaristia solene, celebrada na Igreja de S. Miguel, é seguida da cerimónia de veneração das relíquias e da procissão da imagem do Beato Inácio de Azevedo. Nos últimos anos, tem-se feito coincidir esta celebração, muito arreigada na população de Tazacorte, com a visita do bispo da diocese e a celebração do crisma. Tornou-se hábito, desde há alguns anos, mergulhadores profissionais e amadores descerem ao fundo do mar, homenageando os mártires no local do seu martírio, que se encontra devidamente assinalado com cruzes de pedra ali colocadas.
TEXTO DA AUTORIA DO P. JOÃO CANIÇO, SJ