Um sopro ainda não poluído

Discreta e silenciosa, há uma íntima relação entre a Poesia e a Ecologia.

Num tempo de profunda crise ecológica, em que os esforços se reúnem em torno de preocupações à escala planetária, podemos esquecer-nos de cuidar o ínfimo e o minúsculo. Isto implica mão de jardineiro, olhar de ourives; uma outra forma de atenção.

Ainda não mereceu reflexão suficiente o cuidado que tem sido dado à palavra, também ela coisa natural e mal-tratada. Somos rápidos demais com as palavras. Fazemos o mesmo que com tudo o resto: usamos, e deitamos fora. Quantas palavras guardamos no coração? Como temos cuidado de homem, mulher, criança, estrela, que, para Eugénio de Andrade, trazem sílabas «onde a luz é feliz e se demora»? Pergunto quantas vezes pensamos nelas, quantas vezes agradecemos tê-las por perto, quando a solidão ameaça engolir-nos, ou o mundo parece coisa distante e estrangeira?

Começámos a desejar, na pressa dos encontros, palavras bem delimitadas, bem definidas, como se a vida fosse delimitada e definida. Temos medo das palavras, não menos exactas ou verdadeiras, que trazem intacto um segredo, que não têm entrada no dicionário, que apontam para lá do dizível, trazendo silêncios nas sílabas, e nos deixam não-sei-como, pensando em não-sei-quê. Talvez seja isto que faz do mundo um lugar desencantado, e seja tão fácil ver na árvore, no diamante, no riacho, materiais que controlamos e entendemos. Julgamos que na nossa palavra séria, bem comportada, prendemos e conseguimos o sentido das coisas: ilusão das ilusões. As palavras não são instrumentos, nem ferramentas de comunicação, prontas-a-usar, de natureza descartável. Permitem-nos dizer uma outra verdade, capaz de falar a vida que nos atravessa, suave e violenta.

Na sua última exortação, o Papa Francisco não esquece a íntima relação entre a palavra e a Ecologia. Num texto que enfrenta o desafio a que nos convida a Amazónia, pode surpreender o gesto de Francisco, ao citar dez poemas e dez poetas, todos eles nascidos no continente sul-americano. Esta proximidade entre a voz que canta e a terra que chora não é insignificante. São convocadas vozes que conhecem de perto o grito da floresta. A verdadeira Ecologia não se pode fechar num conjunto de regras universais. Tem de encarnar na comunidade que habita os lugares. Pois o lugar é sempre diálogo, casa comum, palavra partilhada.

O louvor e a contemplação são modos de cuidar, de deixar que as coisas sejam na sua maravilha. Implicam-nos, irremediavelmente, na realidade das coisas; enraízam-nos. Cantar é tomar parte.

Francisco diz: «Os poetas populares, enamorados da sua imensa beleza, procuraram expressar o que este rio lhes fazia sentir e a vida que ele oferece à sua passagem, com uma dança de delfins, anacondas, árvores e canoas. Mas lamentam também os perigos que a ameaçam. Estes poetas, contemplativos e proféticos, ajudam a libertar-nos do paradigma tecnocrático e consumista que sufoca a natureza e nos deixa sem uma existência verdadeiramente digna» (QA 46) .

O louvor e a contemplação são modos de cuidar, de deixar que as coisas sejam na sua maravilha. Implicam-nos, irremediavelmente, na realidade das coisas; enraízam-nos. Cantar é tomar parte. A realidade não é mais olhada a partir de fora; torna-se realidade habitada. A palavra que louva rompe a lógica de comércio que nos consome, porque não serve como moeda de troca; é gratuita. Lança um novo olhar sobre os delfins, sobre as anacondas, sobre as árvores, sobre as canoas, dando espaço ao seu grito. E a Amazónia torna-se presente nos poemas que lhe são íntimos. Só assim é possível que, do outro lado do Atlântico, se possa conhecer inteiramente o seu drama, e amá-lo. Sem o louvor dos poetas, cuidaríamos de um real abstrato, e não de uma vida concreta, dinâmica, que dança. Herberto Helder escreve: «as casas são fabulosas, quando digo: / casas. São fabulosas / as mulheres, se comovido digo: / as mulheres». É enorme cantar.

Talvez perguntemos o que pode a poesia num tempo como este, se ela é, afinal, inútil, ou, como dizia Tomás de Aquino, «a mais ínfima das artes». Sombra de uma sombra, o poema, mais do que um gesto que move montanhas, é um trabalho de humildade, de cultivo e profecia – e tantas vezes o que esperamos nasce num estábulo. A palavra mais pobre é a mais profética; a única capaz de abrir, entre os prédios da cidade, horizontes vastos. É uma palavra respirada, atravessada de um sopro ainda não poluído. O que todo o poema diz é que é necessário um outro modo de habitar; uma outra velocidade, mais atenta; uma outra intimidade com a terra, um outro empenho do coração; um ofício de paciência e fidelidade, sempre disposto a reafirmar o esplendor do mundo.

Ainda que tudo ameace a ruína, é preciso louvar. Talvez seja essa a maior forma de protesto face à injustiça. Não esqueço o pedido de Adam Zagajewski:

 

«Tenta louvar o mundo estropiado

Recorda os longos dias de Junho

e os morangos silvestres, as gotas de vinho rosé.

Recorda-te das urtigas, que metodicamente invadiam

as herdades abandonadas dos exilados.

Tens que louvar o mundo estropiado.

Olhaste os iates e os navios elegantes;

um deles preparava-se para uma longa viagem,

aos outros esperava-os um salgado nada.

Viste os fugitivos que iam para lado nenhum,

ouviste os carrascos a cantarem alegremente.

Deverias louvar o mundo estropiado.

Recorda os momentos em que vocês estavam juntos

num quarto branco e as cortinas se mexiam.

Regressa em pensamento ao concerto, quando a música explodiu.

No Outono, colheste bolotas no parque

e o redemoinho das folhas cobria as cicatrizes da terra.

Louva o mundo estropiado

e a pena cinzenta que um tordo perdeu

e a luz delicada que se afasta e desaparece e regressa de novo».

(tradução portuguesa de Marco Bruno, in Adam Zagajewski, Sombras de sombras, Tinta-da-China, Lisboa, 2017.)

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Fotografia de Madalena Meneses

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.