Porque adoro o Natal

O grande desafio de hoje não é regressarmos ao passado que já foi – sociedades urbanas não reconstroem famílias numerosas. Mas é construirmos formas de organização e rituais que nos façam estar juntos, perto.

Cresci com Natais de sonho, com reencontros de uma grande família, afectos, e presentes na lareira. Entre ateus ou agnósticos, e uma minoria de religiosos. Mais tarde, já adulta, e vendo a depressão tornar-se uma doença endémica, compreendi, entre outras coisas, o papel do Natal, da família e, sobretudo, dos rituais. Precisamos de estar juntos para sermos felizes, mas sem organização não nos encontramos. Sem que alguém tenha a ideia de nos juntar estamos cada vez mais sós. Os feriados religiosos jogam esse papel, cada vez mais há poucas instituições associativas que tenham essa dimensão humanizadora, sobretudo porque vivemos a crise de organizações fora do Estado como sindicatos, clubes locais, associações, etc. Ainda que rodeadas de multidões, no trabalho, nos transportes, no trânsito, na cidade, a solidão é endémica porque os mecanismos associativos não são naturais. Ou melhor, são naturais (enquanto espécies selvagens), não são é compatíveis com um modelo económico cujo sucesso depende da quantidade de pessoas que eliminamos no caminho.

Precisamos de estar juntos para sermos felizes, mas sem organização não nos encontramos. Sem que alguém tenha a ideia de nos juntar estamos cada vez mais sós.

O Natal não é só nem principalmente uma festa religiosa, é uma festa humana. Que celebra a vida, muito antes das religiões o terem sacralizado ou o liberalismo o ter desnatado com a mercantilização, a que vulgarmente chama consumismo. O Natal não é uma propaganda desnecessária da Igreja, para perpetuar o poder, embora possa ter esse significado para algum sector. O Natal é acima de tudo a ritualização de uma necessidade vital para a nossa felicidade e sobrevivência da espécie – a organização da vida em sociedade. A Igreja tem milhares de anos dedicada a organizar a vida social. Precisamos de estar juntos, e de celebrar a vida. O Natal foi ritualizado nesta época pela Igreja porque o paganismo já celebrava o solstício de inverno: é nesta época que os dias começam a crescer. E os dias mais longos significam mais agricultura, mais vida, mais cultura (cultura vem da palavra culto, cultivar a terra). Tudo pode agora crescer – daí o nascimento associado a esta época. A figura do presépio é uma metáfora dessa verdade – vivemos porque os outros existem. Precisamos dos outros. A ideia de uma família unida em paz que olha com amor um ser mais frágil não tem nada de errado em si, é uma belíssima imagem de amor. Por conservadorismo muitos olham esta imagem como a única possível de vida em família, por sectarismo outros deitaram fora o bebé com a água do banho, deixando de celebrar a união das pessoas.

A figura do presépio é uma metáfora dessa verdade – vivemos porque os outros existem. Precisamos dos outros. A ideia de uma família unida em paz que olha com amor um ser mais frágil não tem nada de errado em si, é uma belíssima imagem de amor.

Embora eu fosse tão ligada à minha família paterna como à materna os Natais eram com a família da parte da minha mãe, perto de Alcobaça. Éramos 8 primos com sólidas relações de amizade construídas em anos de férias juntos, que solidificaram relações de confiança, construída a brincar, e afectos, tios e tias e uma avó. Só depois da minha avó morrer, quando eu tinha 16 anos, percebi o que ela queria dizer com a minha prenda «é ter-vos cá e bem, com saúde». A minha avó tinha vivido a dramática experiência de um acidente que muito cedo matou o meu avô. Para ela o Natal era nós chegarmos, e bem. Doce, terna, recebia-nos com broas, filhoses e arroz doce, tudo da sua mão. O ritual de amassar e levedar a massa; o de mexer o arroz doce, de fazermos juntos a árvore de Natal, e de irmos repor a lenha; de abrirmos o armário do serviço especial de Natal e pôr a mesa, em conjunto, tudo isso nos juntava e aproximava – foi à volta deste ritual que nos conhecemos, rimos, abraçamos. Fomos ficando melhores, uns e outros, juntos.

O grande desafio de hoje não é regressarmos ao passado que já foi – sociedades urbanas não reconstroem famílias numerosas. Mas é construirmos formas de organização e rituais que nos façam estar juntos, perto. Combater a competição doentia, e a solidão depressiva, é hoje um dos grandes desafios que temos como género humano pela frente. Isso faz-se celebrando o Natal, e construindo outros e novos natais. Feliz Natal.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.