Pisar leve sobre o mundo

Pisar leve é tocar sem destruir: dizer sem corromper o silêncio, o caroço da palavra. Caminhar sobre a terra, unindo com o passo o sismo e a calmaria. Pisar sobre o incerto, o instável: uma forma última de respeito.

O indígena e activista Ailton Krenak afirmou numa entrevista que pisamos duro sobre a Terra. Pelo contrário, o índigena pisa leve, bem leve, sobre a Terra [1]. Gostaria de dedicar um tempo a este modo leve de pisar.

Lembro o magnífico texto de Italo Calvino dedicado ao tema da leveza. Italo recorda uma imagem contada por Bocaccio numa das novelas do seu Decameron. A história refere-se ao poeta Guido Cavalcanti. Caminhando por um cemitério, Cavalcanti é interpelado por uma brigada que o provoca. Guido, vendo-se por eles cercado, prestamente replicou: “Meus senhores, podeis dizer-me em vossa casa o que vos apetecer”; e pondo a mão num daqueles túmulos, que eram grandes, e levíssimo como era, deu um salto e passou para o outro lado, e livrando-se deles foi-se embora [2].

Levíssimo como era, deu um salto. Este salto conta-me muito sobre o pisar leve. Guido pisava leve sobre a Terra, e esta leveza manifestava-se em todas as dimensões da sua vida. Também nos seus poemas, sentimo-lo pisando leve. Guido pisa leve sobre as palavras. Di-las como quem murmura. Passa rente e raso à linguagem, como o faisão sobre as águas. O seu dizer não fere a realidade. Escutamos os poemas de Cavalcanti e a neve cai, sem vento.

Mas como consegue Guido passar levíssimo sobre o túmulo? Gosto de me demorar no gesto anterior. Diz-se que o poeta pôs a mão num daqueles túmulos. Imagino a sua mão tensa, forte, bem apoiada na pedra: imagem dura, concreta. E, no entanto, é essa mão precisa, determinada, que permitirá o mais suave dos saltos.

É curioso como esquecemos a força necessária à leveza. Lembro a primeira vez a que assisti a um bailado, de perto. Os quase-voos que via os bailarinos desenhar eram acompanhados pelo baque forte e seco dos seus pés contra a madeira do palco. Então percebi que a grande leveza exige a grande força. Os leves bailarinos têm os pés em ferida. Ensinam que o pisar leve e indígena sobre a Terra é um pisar exigente, feito de escutas grandes.

O pisar leve não é o pisar leviano e distraído que ignora as coisas à volta. Pisar leve é estar comprometido com a realidade. Pisar leve só é possível se uma grande atenção deixar que o mundo seja, e se abra, em seu mistério.

A ecologia e o cuidado devem sempre pisar leve. O cuidado tem mãos de veludo, abraços de veludo, que não esmagam os ossos. Abraços que integram a morte na vida, e a vida na morte. O que é um abraço? Um corpo pisa leve noutro corpo, um corpo ama outro corpo.

Pisar leve é tocar sem destruir: dizer sem corromper o silêncio, o caroço da palavra. Caminhar sobre a terra, unindo com o passo o sismo e a calmaria. Pisar sobre o incerto, o instável: uma forma última de respeito.

Pisar leve é, também, não trazer peso: pisar com pouca tralha. Já Tuiavii, também indígena, dizia do homem branco que este carregava muito peso em cima do corpo, muita roupa. Pisar leve sobre a Terra é viver do pouco, no esplendor do pequeno.

E pisar leve não é levitar. Pisar leve não é voar longe. Pisar leve é estar bem perto. Estar bem perto sem fazer sombra demais, como um toldo urgente, nos dias quentes do verão. Na língua portuguesa, toldo também se pode dizer na palavra amparo. Amparar é fazer sombra. Não a sombra que afasta a luz, mas aquela que revela o seu desenho.

Pisar leve é pisar sem sapatos. Tocar e ser tocado. Os pés tocam a lama, o barro fresco, a erva, a pedra. Os leves camponeses têm os pés em ferida. Pisam a uva que transformam em mosto. Logo brotará o vinho, o louvor. O pisar leve descobre nas coisas a alegria.

Escrevo a partir de um tempo de dureza e luto, em que, como a Italo Calvino, me parece que o mundo está a ficar todo de pedra. Assim se torna, para mim, vital evocar o pisar leve daqueles que me partiram e que comigo partilharam a alegria simples de viver. Pisar leve é também reconhecer na fragilidade a única forma possível de salvação.

Dedico este texto aos amigos, onde quer que estejam.

[1] https://revistacult.uol.com.br/home/ailton-krenak-entrevista/

[2] Italo Calvino, Seis propostas para o novo milénio, Editorial Teorema, Lisboa, 2006, pp. 25 – 26.

 

Desenho de Margarida Alvim.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.