“Fala, Amendoeira”

A amendoeira segue duas leis: a lei da natureza e a lei do mansinho.

Quando Deus perguntou a Jeremias: o que vês?, o profeta respondeu: vejo um ramo de amendoeira (Jer 1, 11).

Na língua hebraica, o nome «amendoeira» (shaqued) e o verbo «vigiar» (shoqued) estão muito próximos, na feliz vizinhança que algumas palavras partilham. Imediatamente ao lado está o quadro de Van Gogh, em que uma única amendoeira em flor esvoaça, nesse esplendor próprio das coisas que vêm ao mundo para falar uma única frase e logo partem.

Carlos Drummond de Andrade, a quem roubámos o título deste texto, começa assim a sua primeira crónica no jornal brasileiro Correio da Manhã, intitulada, justamente, “Fala, Amendoeira”: “Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza – essa natureza que não presta atenção em nós”. Em janeiro, e na crónica de Drummond, é a amendoeira que fala.

A amendoeira é a primeira árvore a florir. Podemos já avistá-la, branca e rosada, à margem de alguns caminhos. A flor da amendoeira aguenta sozinha o rigor do inverno.

A irmã amendoeira é uma coluna que sustenta o universo (assim se dirigiam aos irmãos os monges do deserto). Mas é coluna de barro, pois, como a profecia, é frágil, sussurro lançado ao vento, ou o grito do sentinela sozinho a vigiar uma cidade inteira.

Nada mais fugaz do que a profecia, nada mais discreto, nada tão silencioso. Guimarães Rosa escreve: “Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre”. A amendoeira segue duas leis: a lei da natureza e a lei do mansinho. A sua flor é quase-nada: existe só por pouco. Vem vindo, na voz do profeta, prometendo estação nova, e já impregna o ar frio da invernia perfume quente, de mansinho.

Quando as amendoeiras começam a florir, dou por mim a pensar em Jeremias, e na humildade da sua resposta: «Vejo um ramo de amendoeira»; e há qualquer coisa que se altera, quase-nada, quase-tudo.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.