Liturgia como lugar de encontro: o papel da arquitectura

O espaço tem a capacidade de aproximar os irmãos ou dispersá-los, isolar-nos ou abrir-nos ao próximo, convidando-nos ao exercício da proximidade. No dia da IV Jornada de Liturgia, Arte e Arquitectura, a reflexão do arq. João Alves da Cunha.

O espaço tem a capacidade de aproximar os irmãos ou dispersá-los, isolar-nos ou abrir-nos ao próximo, convidando-nos ao exercício da proximidade. No dia da IV Jornada de Liturgia, Arte e Arquitectura, a reflexão do arq. João Alves da Cunha.

1.

Considerar a liturgia como lugar de encontro é hoje consensual, sendo esse, inclusive, o tema do ano pastoral 2018-2019 no Patriarcado de Lisboa. Neste contexto, têm surgido várias iniciativas para reflexão e aprofundamento do significado de tal afirmação, pois são várias as possibilidades que decorrem daquele mote. À cabeça surge a liturgia como lugar de encontro com Deus. Apesar de tal ser verdadeiro, não deixa de ser curioso verificar que Jesus, quando procurava estar a sós com o Pai, se retirava para lugares solitários, muitas vezes o cimo de um monte (Mt 14, 23; Mc 1, 35; Lc 5, 16). Toda a criação é, efectivamente, lugar de encontro com Deus, ou como nos lembra Santo Inácio de Loyola, podemos“encontrar Deus em todas as coisas”. A liturgia não é, portanto, o único lugar para o encontro com Deus, tal como não é o único lugar possível para o encontro connosco próprios, outra leitura por vezes apontada.

Quanto ao entendimento muito recorrente da liturgia como lugar de encontro com os outros, torna-se necessário distinguir duas possibilidades que, apesar de não se oporem, são qualitativamente diferentes. Se o encontro com o outro se inscreve no quadro do segundo mandamento – amar o próximo (Mt 22, 39) -, certamente que este pode e deve concretizar-se na liturgia. Mas também é certo que à pergunta «Quem é o meu próximo?», Jesus respondeu com uma pequena parábola sobre um samaritano “que ia em viagem” (Lc 10, 29-37). O próximo que Jesus nos convida a amar encontra-se, portanto, com maior premência nos caminhos do mundo, nos que têm fome, sede, estão nus, doentes, presos, sem casa (Mt 25, 31-46), ou, como bem resume S. Óscar Romero, em “toda esta carne que sofre”.

Permanecer na radicalidade de um tal amor –que reclama a nossa vida toda (Mt 16, 25)– não é fácil nem adquirido. Nas durezas e desvios do mundo, muito facilmente viramos o olhar e seguimos o nosso caminho. Não terá sido, portanto, por mero acaso que Jesus, aproximando-se a hora da sua morte, após lavar os pés aos seus discípulos lhes deixou um mandamento novo – “Que vos ameis uns aos outros”, acrescentando que é assim que “todos conhecerão que sois meus discípulos” (Jo 13, 34-35). A mesa da ceia – e com ela a liturgia – ganha então uma densidade nova: é ao seu redor que os discípulos (re)conhecem Jesus e (re)aprendem o significado do lava-pés, do serviço, do dar a vida. Por isso ali voltam muitas vezes (At 1, 13), porque, como bem assinala frei Carlos Maria Antunes, “a fraternidade universal ensaia-se à volta da mesa”. É no encontro à volta na mesa que, com a graça de Deus, fortalecemos a fé e aprendemos uns com os outros, como quem treina para ir a jogo no campo mais difícil, a amar o outro como Jesus nos ama.

2.

A liturgia torna-se assim verdadeiramente aquilo que significava: uma obra em favor do povo, de todo o povo. Todavia, ser escola de fraternidade pede proximidade e a participação activa de todos os fiéis, expressão conscientemente desejada e repetida na Constituição conciliar Sacrosanctum Concilium, de 1963. A sua concretização precisa da colaboração da arquitectura, como lembrou dois anos depois o beneditino Godfrey Diekmann ao afirmar que “é desencorajante exortar os fiéis à plena participação nos sagrados mistérios numa igreja que lhes torna praticamente impossível tal participação”.

Também a arquitectura condiciona significativamente a liturgia, podendo a leitura dos mesmos textos litúrgicos em espaços diferentes conduzir a moções muito distintas.

João Alves da Cunha

Como refere Klemens Richter, “que a liturgia seja celebração da fé e que, por isso, ela influencie a fé, é considerado geralmente algo evidente. Mas que isto seja válido também para o lugar no qual os cristãos se reúnem para as suas celebrações litúrgicas, já não parece ser evidente da mesma forma.” Ou seja, também a arquitectura condiciona significativamente a liturgia, podendo a leitura dos mesmos textos litúrgicos em espaços diferentes conduzir a moções muito distintas. O espaço tem a capacidade de aproximar os irmãos ou dispersá-los, pode isolar-nos ou abrir-nos ao próximo, convidando-nos desde logo ao exercício da proximidade e do amor fraterno.

3.

Despertos para a revelação proporcionada por uma liturgia que procura ser também lugar favorável de encontro e reconhecimento dos irmãos, vários liturgistas, teólogos e arquitectos procuraram conceber, no último século, propostas de espaço litúrgico coerentes com esse espírito Relembramos os padres Romano Guardini e Heinrich Kahlefeld e os arquitectos Rudolf Schwarz e Emil Steffann, que se tornaram referências incontornáveis do grupo de pioneiros – profetas –que integraram os movimentos de renovação litúrgica e arquitectónica. Através de obras como O Espírito da Liturgia (Guardini, 1918), Da construção de igrejas (Schwarz, 1938) ou a igreja de S. Lourenço, em Munique (Steffann com Kahlefeld, 1955), construíram bases seguras que ajudaram a tornar possível o aggiornamento proposto pelo Concílio Vaticano II e uma nova noção da Igreja, entendida e sublinhada como Povo de Deus.

A mudança de época vivida no final da década de 1960 provocou hesitações no seio da Igreja Católica que levaram ao que vários chamaram de hibernação do Concílio Vaticano II. Com a eleição de Jorge Bergoglio como 266º Papa, iniciou-se uma primavera franciscana que tem vindo a recuperar temas e discussões com mais de meio século, mas que não perderam a sua actualidade. Entre eles contam-se a reforma da Igreja e a participação dos leigos na vida daquela, vivências que se espelham de um modo muito concreto na forma como celebramos a liturgia e nela nos encontramos. Interessa, portanto, estarmos atentos às questões do espaço e da arquitectura, retomando o caminho já percorrido, certos de que, com a graça de Deus, a reflexão e diálogo abertos ao espírito e aos sinais dos tempos darão bons frutos. Se vivermos a liturgia como lugar de encontro de irmãos, ali ensaiaremos a fraternidade universal, aproximando-nos do próximo e de Deus.

 

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Igreja de São Lourenço, em Munique.

Realiza-se hoje, 24 de novembro, a IV Jornada de Liturgia, Arte e Arquitectura, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Lisboa. João Alves da Cunha é um dos intervenientes neste encontro com a comunicação: “Onde está o teu irmão”: A liturgia como ensaio da fraternidade universal

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.